O Setor Noroeste é a segunda maior mentira que se planta no cerrado. A primeira foi Brasília. Dito isto, sei que os apaixonados pelo poder, pela riqueza e pelo status que a capital proporciona, hão de espichar os sobrolhos, menear a cabeça, arrastar as cadeiras, abandonar a leitura e maldizer o dono destas palavras.
Pouco importa, não é a eles que me dirijo, pois que é de todo inútil ofertar palavras lúcidas aos que cegam na ilusão desmedida de um poder comprado, de uma riqueza estéril e de um status capenga e inútil. E quanto aos que me dirijo nesta prosa, minhas sinceras desculpas pela falta de originalidade com as palavras, pois que o pouco importa já virou lugar comum na condução da cidade. Está inserido nos autos da Administração Regional, nos artigos da Lei Orgânica do Distrito Federal, nos discursos parlamentares. Está inserto nas urnas das eleições e se oculta na voz da milícia, que se estabelece em surdina dentro dos institutos, agências e organizações do poder público.
O pouco importa está inscrito em cada tijolo assentado nas construções do novo bairro: pouco importa a natureza com sua rica fauna e flora, pouco importa o inchaço que o novo setor trará às vias, pouco importa o destino da chuva sobre a manta asfáltica, pouco importa a bolha imobiliária que cresce a cada segundo, pouco importa o tombamento de Brasília como patrimônio histórico. Aos novos xerifes da capital, pouco importa o grito dos estudantes, ambientalistas e afins que se embrenham na vegetação nativa e afrontam, sem poder de pólvora, o poder das empreiteiras aliadas à guarda pública e privada, e que são pessoas preocupadas com questões mínimas e planetárias para o bem comum. Por fim, resta a triste constatação do paradoxo de que pouco importa o Santuário dos Pajés na capital mística e ecumênica.
Aos que conseguiram sustentar os olhos até este parágrafo, por não temerem a denúncia deste lápis apontado em riste sobre a ambição arbitrária e o desrespeito coronelista que campeia no cerrado, apresento-me para que não fiquem órfãs e nem sejam vãs as palavras já escritas. Sou cria deste quintal e por aqui existo desde menino. Ainda trago nos olhos a lembrança das primeiras rajadas de poeira da infância, a cor vermelha do barro, os diversos matizes do céu colorido com pipas. Pode parecer estranho, e soar como ingrato, a verdade exposta nas primeiras linhas deste texto, sobretudo, por ser a expressão de um morador que, há quase quatro décadas, pisa esse chão batido. Mas, não se trata de ingratidão e sim de um apelo de retorno à sobriedade. Não é da boca para fora que faço a verdade chegar à luz. É antes, a voz de dentro, de quem de dentro assiste atônito, o rumo, extraordinariamente torto, que tem tomado a cidade de traços retos e pela qual ainda guardo afeição.
Existe um conflito em andamento que, por interesse próprio ou covardia, a imprensa não noticia. Ou, quando o faz, imprime as manchetes com as tintas que importam apenas aos mandatários do descaso, sem deixar incidir sobre os fatos as luzes e sombras que levam à verdade. As terras indígenas do Noroeste abrigam agora um faroéstico embate, por assim dizer, temerário e sangrento. Desmatam o cerrado, desabrigam os índios e torturam, com objetos de choque, os manifestantes que lá se encontram em luta para que as obras não avancem e o processo colonizador estanque. Estranhamente, os institutos e fundações credenciados para intervirem em favor do meio ambiente, dos direitos humanos e das causas indígenas, fazem vista grossa e lavam as mãos e, com tais atitudes, corroboram os propósitos escusos de seus corruptos fins.
O discurso de que o Setor Noroeste será um bairro ecológico é tão mentiroso quanto dizer que servirá para ampliar o número de moradias aos habitantes de Brasília. Aliás, de qual Brasília? Provavelmente, de outra, que nunca pisou esse barro, que nunca atravessou uma passarela subterrânea no eixão, que nunca lutou por uma causa candanga, que nunca comeu um pastel na rodoviária, que nunca se sentou numa parada de ônibus, para saber o quanto dói esperar pela morosidade do sistema de transportes que faz o translado dos passageiros na capital.
De uma Brasília que nunca precisou ser atendida nas emergências dos hospitais públicos, que nunca apanhou da polícia em passeatas contra a devassidão governamental. De uma Brasília que nunca freqüentou as cadeiras das escolas públicas.
Onde estão os milionários que habitarão essas mansões suspensas e suspeitas? A quem interessam as construções dessa expansão esnobe de Brasília? Se, andando pela cidade, nos circuitos onde transitam os que vibram como filhos diletos de Brasília, não se encontram os futuros moradores do falacioso bairro verde, então, de que Bancos sairão seus milionários habitantes? São, sem sombra de dúvidas, fantasmas, marajás, habitantes de uma bolha mágica inacessível a nós reles mortais.
Considerando o plano de expansão orientado por Lúcio Costa, o Noroeste é uma farsa pintada de verde. Será preciso ensinar, outra vez, aos construtores do Setor Noroeste, aos Presidentes do IBAMA, do IBRAM, da TERRACAP e da FUNAI que, dentre os princípios do pensamento ecológico, estão o do não desmatamento e o da proteção aos índios? Será preciso, outra vez, acontecer o massacre aos manifestantes, como aquele aos operários mortos na obra faraônica de Brasília, simplesmente, por reclamarem da comida que a construtora ambiciosa lhes colocou nos pratos? Será preciso a morte de outros Galdinos para que se respeite o índio?
O Setor Noroeste não é bem-visto e tampouco bem quisto, senão pelos que se encontram apartados do bom senso. Brasília não merece engolir esse sapo, enorme, que lhe está sendo empurrado goela abaixo, arquitetura adentro. E, muito embora já estejam à vista, no coração do Noroeste, os prédios-palacetes que se erguem em velocidade estúpida, a luta pela interdição do bairro cinza continua. E que fique claro, para que depois não se sofra por falta de aviso: o Setor Noroeste é, por natureza, um bairro maldito.
por Renato Fino - Colaborador do Jornal O MIRACULOSO
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